Pode parecer que eu já falei o suficiente aqui sobre o livro Ana Karenina, de Tolstoi, mas com certeza eu não falei nem um terço do que poderia ser falado. E nem tenho a pretensão, com este texto, de esgotar o assunto. Coloco minhas impressões sobre certos aspectos do livro.
O que eu gosto nesse tipo de romance “realista” (com mil aspas) é exatamente a descrição minuciosa de roupas, comidas e hábitos. Descrições de um tempo que eu não vivi – e devo confessar que eu tenho uma certa quedinha pelo século XIX. Adoro quando as personagens “fazem a toalete”, “fumam charutos após o jantar nos gabinetes”, possuem escrivaninhas com papéis bordados com iniciais e lacres de cera quente com mensagens importantíssimas como um convite para o chá das cinco – e que são mandadas por criados em bandejas de prata, devendo, estes, esperar pela resposta - isso sem contar as refeições elaboradas com diversos pratos (chega a me dar água na boca a descrição de coisas que eu nunca sequer comi e nem sei como são).
Como um exemplo, cito a descrição de Ana em um baile, logo no início do livro, mais ou menos:
“Uma toalete de veludo preto, muito decotada, desnudava-lhe os ombros esculturais, que lembravam velho marfim, assim como o colo e os braços roliços, de pulsos finos. Rendas de Veneza lhe guarneciam o vestido. Nos cabelos negros, sem postiços, ostentava uma grinalda de amores-perfeitos, combinando com outra que lhe adornava a fita preta do cinto, rematada por rendas brancas. Estava penteada com muita simplicidade. Apenas alguns caracóis de cabelo frisado na nuca e nas fontes se lhe eriçavam, rebeldes. Em volta do pescoço bem torneado brilhava um fio de pérolas”.
Melhor do que isso só se ela tivesse um camafeu! Adoro camafeus!
Eu gosto desse tipo de descrição, porque eu acho que é disso que é feita a literatura. Não, calma, amigo leitor. Não me refiro a minúcias e detalhes, mas a literatura – talvez toda a arte, não sei; aqui me deterei na literatura – vive dos detalhes. A literatura tem o poder de estender os tempos, concentrar as ações, ou vice versa – ou até, muitas vezes prescindir delas –; enfim, de fazer recortes da realidade e apresentá-la não como ela é, mas como o artista a vê. Porque o que interessa em literatura não é, necessariamente, a história contada, mas a forma como é contada. E essa forma, para mim, tem o poder de recriar ambientes, atmosferas, mundos particulares. Cores, cheiros, tons. Muitas vezes o que me fica depois da leitura de um livro é um tom. Uma cor. Um sentimento. Gosto de saborear as palavras, principalmente quando são palavras pouco usuais ao nosso tempo ou país.
O casal Kitty e Liêvin é adorável. Como não gostar deles? São espécie de coadjuvantes que roubam o romance. Tá, não são tão coadjuvantes assim, mas o casal principal é Ana e Vronski, o homem por quem ela se apaixona e larga o marido. Vronski, inicialmente, demonstra um ligeiro interesse por Kitty, que por sua vez faz pouco caso dos sentimentos de Liêvin, enamorada que estava de Vronski. Após perceber que este nada queria a sério com ela, cai em depressão profunda. Liêvin, muito triste com a negativa de Kitty, também se isola em sua propriedade rural, centrando-se única e exclusivamente em seus negócios.
Já Formiga Irmã, por exemplo, achou o Liêvin chato e teve profunda compaixão para com Vronski e o seu sofrimento.
Liêvin e Ana são como espelhos: simétricos opostos. Estão ambos por demais envoltos em buscas pessoais. Ora, ora e quem não está, dirão vocês? Mas Liêvin e Ana – que na verdade quase não se encontram a não ser em um breve momento, já quase no final do livro – são seres por demais atormentados com a mediocridade da existência, a meu ver. Logo no início, quando voltam para suas casas, respectivamente (Liêvin para a propriedade rural e Ana para a casa do marido, em São Petersburgo), eles sentem-se aliviados por reverem seus cotidianos de segurança. Só que essa sergurança – como toda segurança, aliás, - é uma ilusão.
Conversava com a Bel lá no meu outro blog sobre o livro e ela me dizia que ficou com a sensação de que Tolstoi desprezava as mulheres, pois, tanto nesse livro como, mais ainda em Guerra e Paz o autor sugere personagens femininas com ricas possibilidades e de repente elas se transformam em um mingau sem sal. Aí eu comecei a me perguntar se realmente existem escritores homens do século XIX que retratem as mulheres com complexidade e riqueza. Pensei em Aurélia, de “Senhora”, de José de Alencar, que compra o marido, mas ainda assim ela se arrepende depois, se apaixona. Mesmo a Sônia, de “Crime e Castigo” que é quase a tábua de salvação de Raskólnikov (me corrijam se eu estiver errada) representa o ideal da Madalena arrependida: isto é, a puta, pecadora que, ciente da sua condição, adquire valor quando se redime. Mas o curioso é que se retrocedermos mais no tempo podemos ver personagens femininas muito mais ricas e intensas – Lady Macbeth, de Shakespeare, por exemplo. Seria uma característica da época vitoriana? Por outro lado, Formiga Irmã me lembra que o historiador Peter Gay, que realizou uma pesquisa nos diários de senhoras do século XIX, nos diz que havia muito adultério entre as senhoras casadas da sociedade. O problema é quando esse adultério vinha à tona publicamente. A prática não era absolutamente condenada, desde que permanecesse em segredo.
E aí é a grande fatalidade de Ana. Seu segredo torna-se público, enxovalhando o nome do marido. Assim como Ema Bovary, personagem de Flaubert, cujo mesmo destino trágico do suicídio aparece no momento em que ela não mais tem escapatória das chantagens do (de quem mesmo? Farmacêutico?). Assim como Luísa, de “Primo Basílio” – pra mim um plágio descarado de “Madame Bovary” – que também adoece em decorrência das chantagens de sua pérfida criada Juliana que descobre o romance entre a patroa e o Primo Basílio.
O que eu quero dizer é que não acredito nessa coisa de escritores “a frente do seu tempo”, “universais” e “atemporais”. Todo escritor é um retratista de sua época, ainda que seu estilo não seja, necessariamente “realista”. Ou alguém duvida da “realidade” de A metamorfose, de Kafka?
Dessa forma, torna-se difícil ver personagens femininas ricas e complexas escritas por homens, no século XIX
Na série, trechos-que-eu-mais-gostei, Formiga Irmã lembra a passagem em que Liêvin compara a vida a um barquinho. Não consigo achar a parte, mas diz mais ou menos que, de longe, quando vemos um barquinho, pensamos que ele está tranqüilo e navega por águas suaves. Só quando estamos dentro dele é que vemos as ondulações e turbulências para que ele não vire. Assim também é a vida.
Eu fiquei bastante comovida pela busca de Liêvin sobre o sentido da vida. Mesmo após a trágica morte de Ana – belíssima, por sinal – o livro ainda se sustenta centrando-se, basicamente, na busca pessoal de Liêvin, que já vinha ao longo do livro. E ao final ele descobre que o verdadeiro sentido da vida é o sentido que damos a ela.
Bom, como diria o Gaguinho, por enquanto é só pe-pessoal. O que acharam do livro? Opiniões? Discordâncias? Pitacos de quaisquer natureza serão bem-vindos.